Entrevista exclusiva: Valesca fala sobre empoderamento gay, feminismo, funk pop e seus 15 anos de carreira

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Tema de dissertação de mestrado no Rio de Janeiro; chamada de “grande pensadora” em prova de filosofia do Ensino Médio no Distrito Federal; ícone feminista em documentário dos Estados Unidos.
Essa é Valesca, a funkeira que começou a carreira rebolando com pouca roupa para o público masculino e, hoje em dia, arrebata plateias de mulheres e gays – os chamados “popofãs” – quase sempre bem vestida. Ninguém mais poderia lançar uma música com o título de “Viado”, com a certeza de que os fãs entenderiam não se tratar de um ataque homofóbico. Sua trajetória a qualifica para tal: ninguém tem dúvidas de suas boas intenções.
No clipe, com 2,6 milhões de visualizações em três semanas, ela inverte papeis da sociedade machista: encoxa o belo Raphael Sander, apalpa e abusa do rapaz. Quer mostrar que a mulher pode, e deve, assumir a posição de poder e de dominação, se quiser. A objetificação do corpo feminino, tão cultuada historicamente, é invertida nas mãos de Valesca. No vídeo, o corpo masculino que é objeto de desejo. Há, inclusive, uma cena de bumbuns de fora, que levou o Youtube a censurar o conteúdo para menores de idade. Sabiamente, Valesca fez um discurso contra o machismo: “por que a bunda dos homens com uma mulher mandando neles foi censurado? Se fosse o contrário, se fosse bumbum de mulher não seria censurado. Se fosse o homem mandando na mulher não seria censurado”. O poder do discurso.
No clipe de “Viado”, você coloca os homens em uma situação de erotismo, que historicamente é protagonizada pela mulher. O corpo feminino aparece como objeto de desejo não só no imaginário funk mas também em clipes de rappers americanos. Você inverte isso, e já tinha feito parecido na capa do single “Boy Magia”. Sendo uma voz feminina no segmento funk, como você pensa esses paradigmas do machismo?
Na verdade, a música fala “viado”, então, quando ouvi a composição do Jhama, pensamos: que nome dar a ela? Eu disse: “Viado”. Pensamos: será que não vai chocar? Porque as pessoas veem como uma palavra agressiva, pejorativa, mas eu não acho. 80% ou 90% dos meus amigos são gays e a gente se chama assim. Pelo lado do empoderamento gay, a gente pode vir para cima da homofobia e buscar tornar essa palavra mais leve. As pessoas falam isso carinhosamente. No clipe, o papel era de dominar o homem – tem ali heteros e gays – na cadeia, porque a mulher também pode dominar, assim como os homens. É normal. A gente não quer ser melhor nem pior do que ninguém: só queremos a igualdade. A palavra “viado” é para buscar o empoderamento gay, contrariar a homofobia e lutar por direitos iguais. Eu sempre fui a rainha dos gays, como eles sempre colocaram, e é um público que nunca pensei em alcançar, então vou sempre levantar essa bandeira.
Em uma parte do clipe, você prende o Raphael Sander encoxando-o, e é muito simbólico dessa inversão de papeis culturais do esperado. Que mensagem você quer passar?
Na história, ele entra assaltando o restaurante e eu, como policial, jogo ele no chão sem imaginar que é um cara lindo, gostoso e maravilhoso – que o Raphael é mesmo, de fato (risos). Vou com tudo para pegar e prender, mas quando tiro aquela máscara dele e me deparo… putz! “Você não vai passar batido”! Eu levo para prisão, mas me aproveito de todas as maneiras. Vou ousar e abusar de você! Né? É isso. É o que acontece no nosso dia a dia. Na cadeia, é um cara pegando e apalpando o outro para inspeção. Ali, com uma mulher no homem, é a sensualidade. Quantas mulheres não têm vontade de fazer isso em um homem? O fetiche existe. Quantos casais não se vestem de policial, de presidiária, para viver esse momento?
Você falou dos gays. Esse clipe se comunica muito com as mulheres e com os gays. Esse é o seu público – os popofãs?
Sim, meu público é formado pelos gays, pelas mulheres, os adolescentes e, incrivelmente, as crianças também. Nunca fiz trabalho para as crianças, mas sou parada por muitas nas ruas. As mães vêm e pedem para eu gravar vídeos para as filhas. Quando entro em um avião, ouço “é ela, é ela sim!”, e aí elas vêm. Acho que a televisão e “Beijinho no Ombro” me trouxeram as crianças. É bom, porque criança é muito sincera.
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Você passou por uma repaginada, se tornou mais elegante, mas nunca abandonou o funk. Em vários momentos, falou abertamente que não canta, mas que encanta. Você consegue pensar um plano de carreira a longo prazo? Imagina-se fazendo o mesmo com 50, 60 anos?
Por que não? Eu vou dizer para você: não sei se estarei viva amanhã. Eu me vejo fazendo planejamento para um ano: vai vir mais um clipe, música que já está pronta… Mas, para daqui a cinco anos, não penso. É difícil, porque não sei se vou estar viva ainda, sabe? Mas eu quero estar bem, trabalhando, a todo vapor, nesse meio. Quero estar bem e trabalhando.
Isso que quero saber: se você tem vontade de fazer outras atividades. Neste ano, por exemplo, você escreveu um livro.
Sim! Escrevi um livro – uma coisa que nunca pensei e surgiu na minha vida. Eu nunca deixo escapar as oportunidades que vêm. Então, o que vier, eu vou agarrar com unhas e dentes. Vou aproveitar ao máximo.
A gente se encontrou no Prêmio Multishow. Chamou-me atenção neste ano que havia muitos representantes do funk migrado para o pop: Anitta, Ludmilla, Nego do Borel. Queria saber a sua opinião sobre esse funk mainstream, que dá uma higienizada nos temas e nas letras.
O funk vem crescendo, cada vez mais evoluindo. É normal que alguns vão trocando sua letra, seu estilo, para esse funk pop. Às vezes, nem funk é mais: fica só pop. Vai do estilo e do gosto de cada um. Eu acho que tem que entrar no gosto popular e, quando entra, é bom. “Beijinho no Ombro” é funk pop, diva, totalmente: tem o funk mas é pop. Mas eu nunca deixei o funk. Eu agora falei: quero funk, não quero nada pop, e aí fizemos “Viado”. Tá faltando isso. Funk é funk, por mais que nosso funk tenha mudado: todo mundo investindo em clipe, em palco, fazendo altas produções… e isso é ótimo, porque o fã quer ver isso. O fã adora clipe. Hoje, a gente é cobrado. Se não lançar clipe, o fã fica louco. Não adianta lançar só a música, tanto que agora guardei a música e soltei o clipe junto com a música. A gente é cobrado. O Nego, por exemplo, foi para o funk pop e está dando certo para ele. É um caminho, um planejamento. Pode ser que amanhã ele e outros mudem e falem “isso não dá mais certo, vamos ter que voltar para isso”. Vai do gosto de cada um.
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Você está fazendo 15 anos de carreira. Qual a avaliação que você faz da sua trajetória?
Um aprendizado incrível. Muitos obstáculos. Eu digo que você vale o que é no momento. Se você não está valendo nada naquele momento, não é nada para as pessoas. Você só serve quando está valendo algo. É difícil até hoje. Não é fácil, mas eu conquistei muita coisa aos trancos e barrancos. Sou feliz, porque muitas pessoas chegam para mim e falam: “odeio funk, mas amo você”. É muito bom ouvir isso. Como a gente convive com muita gente, em muitos lugares, escuto muito “amo a música de fulano, mas odeio a pessoa”, então é muito bom que as pessoas me amem pelo que eu sou. Eu sou muito transparente nas minhas coisas. Você não precisa nem me conhecer, que você percebe. No começo, com a Gaiola das Popozudas, foi bem complicado as pessoas respeitarem e acreditarem. Meu trabalho era para um público 100% masculino e depois eu consegui dar a volta por cima. Não queria mais os homens gritando gostosa. Queria as mulheres junto comigo. Eu consegui isso. Hoje, tenho elas ali na frente do palco, de todas as idades. Cheguei a um ponto na carreira em que nunca fiquei na minha casa parada sem trabalhar. Faço show todo final de semana. No final do ano, então, faço muito show de faculdade, demais. Nunca parei. Posso dizer que sou uma artista feliz e, quando digo que não canto, eu encanto, é porque realmente nunca sonhei em cantar. Eu sonhei em dançar. Mas hoje eu me entrego sem ter medo, gosto muito e a minha intenção é levar felicidade aos meus fãs. Eu digo: vamos desafinar junto! Eles não estão nem aí. Sou uma artista realizada.
Qual foi o momento mais especial desses 15 anos?
Tudo é um ciclo. Tiveram momentos na Gaiola, mas um momento especial foi o início da carreira solo. Todos duvidaram. Falavam “saiu da Gaiola para fazer o quê? Vai dar certo? Sozinha?”. Achavam que só estava sobrevivendo porque era uma porção de bundas rebolando. Bem isso. Mas mostrei que eu posso: é só você querer.
Quais foram as maiores oportunidades na carreira?
As maiores oportunidades são quando as pessoas não acreditam em você, fecham a porta e depois elas vêm e abrem. Aconteceu bastante. Essas são incríveis!
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No seu livro, você conta que, no início, contratantes te assediavam e não respeitavam. Quando isso começou a mudar?
Sempre acham que porque a mulher está de short curto, com tudo de fora, está pedindo alguma coisa. Sempre acham que vai fazer alguma coisa. Quando a gente começa a se impor, em vez de ficar quieta ouvindo, você cala. Opa! Porque, se você não fizer nada e só reclamar, dizem que você estava dando mole, porque é sempre a mulher que não presta, que dá mole, e o cara sai de bom. Aí você pega e faz [ela encostou o babyliss quente no pênis de um contratante que colocou o órgão sexual para fora da calça no camarim], cala.
Você não acha que sua participação no reality show “A Fazenda” também ajudou?
Nossa, muito! As pessoas acharam que eu ia entrar lá e ser a barraqueira. Pensaram “vai acabar com o mundo, vai botar fogo!”. E eu não sou assim, sou muito quieta. Chego aos lugares e pensam que estou chateada ou com raiva, porque fico quieta no meu canto. Não chego extrovertida, fazendo aquela bagunça. Se não conheço, chego tranquila, no meu cantinho, até ficar à vontade. Mas nunca vou fazer estardalhaço. As pessoas tinham esse estereótipo sobre mim.
Falando ainda dessa questão do assédio, lembrei da hashtag #meuprimeiroassedio. Você lembra qual foi seu primeiro?
Meu primeiro assédio… Teve vários… Mas, de pesado mesmo, foi esse que contei no livro, de botar o babyliss lá…
Qual o limite entre a cantada e o assédio?
O assédio é mais complicado, né, porque vem de uma forma brutal. A cantada é mais escrota no sentido de sem graça, sem criatividade. O assédio vem de uma forma que deixa a pessoa com trauma. Essa é a diferença.
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Você compra para você esse rótulo de feminista?
Sim, eu sou feminista. Digo que já nasci de um útero feminista. No meu livro, fala da minha mãe, até dedico pra ela. Eu conto da quentinha que ela teve que dividir comigo. Ela trabalhava em casa de família, e me levava. Ela foi pegar um pouco de comida para mim e a patroa dela, na época, falou assim: “não, é só a sua comida”. Ela teve que dividir comigo a comida dela. Nem dividir: ela me botou para comer o que tinha. Ela foi criada em colégio interno, é batalhadora, guerreira. Ela podia ter me dado e não me deu: lutou muito para me criar. Minha família é pequena: a gente conta nos dedos – eu, meus três irmãos, minha afilhada, minha mãe e meu filho. Não conheço vó, tio, ela não conhece mãe, pai, não conhece ninguém. Quando fiquei famosa, eu até quis usar os programas de TV para achar a família da minha mãe, mas perguntei para ela e ela não quis. Eu respeitei. Eu já cresci feminista: sou muito independente. Depender de homem jamais! Eu vi minha mãe dependendo e como ela sofreu. Eu trouxe isso para mim. Já cresci com isso. Tenho essa independência. Vou trabalhar, vou faxinar uma casa, limpar o vaso, a privada, mas não vou depender de homem. Tenho isso comigo.
Você, como feminista e mãe de um garoto, que valores passa para ele? Eu acredito que fica na mão das mães de homens começar a mudar esses paradigmas.
Respeitar. Meu filho, não é porque é meu filho não, mas é um exemplo de menino. Uma vez, pequeninho, ele falou na escola: “você sabe quem é minha mãe? Minha mãe é a Valesca”. Eu falei para ele: “e daí? Não quero isso. Você é igual a todos. Você não é rico”. Eu nunca facilitei para ele. Era igual a minha mãe: vou na rua, posso te dar isso, não posso te dar isso, não me peça. Ele cresceu assim. Eu ensinei que ele não devia fazer certas coisas porque ele mesmo seria cobrado – e não porque é filho da Valesca. Todo mundo sabe que ele é filho da Valesca, vai sair no jornal assim, mas é ele que será cobrado. Eu dizia: “vai ficar ruim para você, não para mim. Seu nome vai sair lá”. Sempre falei: “respeite as mulheres. Você sabe o que sua avó passou? Você lembra quando ia para a casa da sua avó, de trem, porque a mãe tinha que trabalhar no fim de semana? Vocês passavam no mercado, sua avó cheia de sacolas, andava aquela rua toda… Você lembra quanto sufoco sua avó passou sendo mulher? Quanto sua mãe passou para criar você? Então, pronto. Dê valor”. Ele sempre entendeu isso. Agora, ele está namorando. É a primeira vez que [a menina] foi na minha casa, que eu conheci. Meu filho nunca me deu esse trabalho. Ele está com 17 anos. Se vai me dar trabalho depois, não sei. Mas até agora não. E eu sou uma funkeira, hein!

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